quinta-feira, 15 de março de 2012

Incidente em Riozinho


Esse texto também foi pra aula, baseado em fatos reais...






Incidente em Riozinho


A lua estava cheia no céu. O ar gélido. Acabávamos de chegar ao local do acampamento. Devia ser perto das dez horas. Durante toda a trilha, o que incluía três passagens de água, um celeiro abandonado e um camping, fomos os únicos a fazer barulho no meio do matagal. Nós e o rio. A trilha muitas vezes costeava a margem do rio e o ruído era ensurdecedor. Mal conseguíamos conversar. Sem falar que era úmido e estávamos tiritando de frio. Embora devesse estar relativamente calor, o nosso excêntrico clima gaúcho apronta das suas e nos fazia sentir um gelo com o minuano que soprava. Paciência. O real problema se seguiria naquela noite, pois fomos preparados para o verão, não para o inverno.

De qualquer forma, havíamos encontrado um lugar bacana. Ao lado do rio, relativamente escondido da trilha e com poucas árvores, o que proporcionou lenha menos molhada que a dos outros locais. Aquele trecho do rio era raso e tranqüilo, bastaram algumas pedras e tínhamos um lugar para gelar o suco e o vinho. Aliás, ótimo vinho. Comprado na vinícola da cidade. Se é que uma Igreja, uma Praça, um Supermercado, uma Escola, um prédio público (que reunia a prefeitura e a delegacia), o bar e a pseudo-estação rodoviária fazem uma cidade. Ficava há cerca de uma hora e meia de onde estávamos. Lá também não encontramos ninguém. Nem andando na rua, nem saindo de bailão, tampouco de bolicho. Todas as casas estavam fechadas, e, enquanto os sinos eclesiásticos dobravam, as que não estavam o faziam assim que nos avistavam, como se fossemos bichos. Gente da cidade, sabe. Encontramos uma moto perdida pela trilha e nada mais. Acho que a última pessoa com que falamos devia ter sido o motorista do ônibus que nos levara até lá. Isso por que o cobrador já tinha ido embora muitas estações antes.

Que beleza! Ali na área escolhida também não havia ninguém por perto, nenhuma viva alma, mesmo sendo feriadão. Teríamos algum descanso afinal. Éramos quatro jovens fugindo um pouco da correria urbana. Ouvimos falar da cidade e suas quedas d’água e resolvemos vir, mesmo sem trazer ninguém que conhecesse. Fomos com a cara e a coragem.

Na segunda noite, ouvimos um ruído. Daquele tipo clássico na moita. Antes que pudéssemos dar uma olhada, surgem dois sujeitos do mato. Ensopados dos pés a cabeça, adentram o acampamento pedindo licença. Só com a roupa do corpo, sem mochila, lanterna, nada. Um deles é bem alto, com cara de alemão. Logo se sentou, ou melhor, se atirou na lona que havíamos colocado junto ao fogo. O outro, também alto, era moreno, usava uma jaqueta de couro e um boné de partido político. Quando percebemos, eles já estavam instalados.

Não falavam coisa com coisa, fediam a álcool, fumo e sabe se lá mais o que. Certamente estavam bêbados ou chapados. Ou os dois. Felizmente já havíamos jantado e todo o equipamento culinário estava guardado, estávamos apenas bebendo perto do fogo. Tarefa para a qual eles prontamente se juntaram. Para a sorte deles, éramos pessoas boas, não podíamos deixá-los ir naquele estado. Não custava deixá-los se aquecer para se recuperarem um pouco do banho que certamente tomaram ao vir para cá (três travessias de água, lembra-se?). Conversamos com eles enquanto isso. Quer dizer, conversar é força de expressão. O alemão estava tão mal que parecia que tinha desmaiado, atirado na lona. Bêbado. O outro, após jogar sua jaqueta de couro na fogueira para “secar”, não parava de falar. Chapado. Quase caíram na fogueira e no riacho. Podiam acabar se afogando em cerca de 30 ou 40 centímetros de água.

“Gente, legal encontrar bacana por aqui. Eu também sou de Porto Alegre, sabe? Minha mãe mora por aqui.” – discursa. “Ela é legal, quero tudo de bom pra ela. Eu já sou um merda, sabe? Aprontei muito por aí. Acabei de vir de Charqueadas.”

Opa, Charqueadas, presídio? Bom, eu não tinha preconceito nenhum com ex-presidiários, mas... vai saber? Ele pode ter simplesmente trabalhado por lá.

“Eu já matei uns dois ou três, sabe? Quando a gente entra numa onda, não tem mais como sair, véio. Eu tava lá, não quis me entregar, eu fui lá e pum. Já era.”

Opa, como assim pum e já era?

“Mas a minha mãe é que é legal, sempre me ajudou. Quer me tirar dessa vida loca. Me arranjou um emprego esses dias.”

“Espero que seja lícito” – divago em silêncio.

“É com um pessoal que também ta acampando por aqui, a gente tava procurando por eles quando achou vocês. É que eu vim armado, sabe? Mas nem esquenta gurizada, eu deixei na moto e vi que vocês são do bem. Eu ia trazer o 38 por que tinham me falado que as “coisa” aqui tavam complicadas.”

38? Eu tinha um facão e olhe lá. E nem estava à mão. Tínhamos também duas machadinhas, que jaziam perto do fogo depois de termos cortado lenha. Ao alcance dele. Realmente as coisas aqui estavam complicadas. Ele falava tanto da própria vida e da mãe, dos seus afetos e desafetos, feitos e proezas que nos sentíamos como um padre em confessionário, ouvido os pecados do cidadão. Não eram poucos. A jaqueta crepitava no fogo.

“Tudo bem... ta vendo esse furo aqui? Esse foi de fogo também... ou foi de bala? Hehehehe”

Rimos junto. De nervosos, claro. Tínhamos que tirá-los dali. O que fazer? O atrativo do local, a ausência de pessoas, se virara contra nós e não haveria ninguém por perto caso fosse necessário pedir algum socorro. Mas eles não sabiam disso. Aproveitamos o fato de que estavam procurando por outras pessoas e informamos que havia outro acampamento não muito longe dali, que batia com a descrição das pessoas que eles estavam procurando. Mentimos na cara dura, se colar, colou.

E colou. Com um pouco de sacrifício, o chapado ajuda o bêbado a se levantar. Pega sua jaqueta e começam a ir embora.

“Ó, muito legal vocês aí, ajudando a gente... mas não se preocupem, por que “conosco ninguém podosco!”. Ria. “Agora eu tô me endireitando na vida”. Entregamos algumas velas para eles poderem enxergar pelo menos um palmo a frente.

“Assim, se vocês forem na casa verde ali perto da ponte, diz pra que mora lá que vocês são “faixa” do Rodrigo. Rodrigo Alves. E pede um pão, por que o pão caseiro da minha mãe é muito bom!”.

“Tá, ta, ta, só vão embora” – penso.

Tão logo eles somem na trilha, tratamos de esconder o acampamento. Terra na fogueira para apagar o fogo sem muita fumaça. Galhos e mais galhos na única entrada do acampamento.Folhas e mais galhos em cima da barraca, para camuflar. Guarda-se a rede e alona embaixo de uma raiz levantada de uma árvore. Todo o estoque de galhos secos vai para o chão, principalmente à volta da nossa barraca. Entramos e aguardamos. Confiávamos que o estado deles não os deixaria reencontrar a trilha para o nosso local, ainda mais depois de escondido. Quando não encontrassem ninguém, certamente voltariam. E sabe se lá com que humor. E de fato o fizeram, cerca de três vezes. Felizmente não nos encontraram novamente.

No dia seguinte, o ocorrido parecia uma sombra, devaneio. Um pedaço de couro queimado na fogueira ficava de lembrança. O dia transcorre sem mais problemas, mas um pouco mais movimentado. Parecia que as pessoas ou tinham se lembrado do local ou tinham se lembrado que era feriadão e que estava um tempo ótimo. Dúzias de pessoas haviam chegado. Como acampamento “descoberto”, cumprimentávamos os passantes, zelando pela política da boa vizinhança. Vai que aqueles doidos aparecem novamente.

E apareceram. Mas desta vez só o alemão. Acompanhado, e bem acompanhado de uma bela guria. Parecia bem alegre, extremamente diferente do dia anterior. Falava direito e parecia ser uma pessoa bacana. Perguntava pelo Rodrigo. Explicou que após se despedirem de nós, procuraram bastante pelo mato adiante, até as velas apagarem. O que não deve ter demorado muito. Se perderam um do outro no meio da madrugada. Ele disse que acabou em um lugar qualquer e só acordou com o amanhecer, sozinho. Foi encontrado pelo pessoal que haviam procurado na noite anterior, mas eles só chegaram pela manhã.

Antes que eu começasse a pensar em uma desculpa para ele não ficar para o almoço, ele se despede, dizendo que estão esperando-o. É puxado pela menina e desaparece na trilha. Devia ter pensado é em uma desculpa para eles terem ficado para almoçar. Vai que a guria tem irmãs ou primas?

Dias mais tarde, já de volta à civilização, um amigo me pergunta, “Tu não acampou em Riozinho neste feriadão?” passando o jornal que estava segurando. Estava aberto na seção de Obituário.

“Encontrado morto Rodrigo Alves em uma piscina natural de 12 metros de profundidade em Riozinho”.

É... Eu estava sim.

1 comentários:

  1. 'taquipariu! D:
    Por essas e outras só acampo se for com uma espingarda. D:
    (Li os pensamentos na tua voz, senpai!xD
    E lembro de ti narrando uma história meio semelhante, mas acho que era outra ocasião...:B)

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