quarta-feira, 14 de março de 2012

Quem sou eu?

Enquanto resolvo o que produzir para colocar aqui (talvez eu relembre minha adolescência, traduzindo algumas músicas), inauguro então a seção dos textos acadêmicos. Um que eu produzi para a cadeira de Produção Textual. Na época essa cadeira estava uma zona, ninguém sabia quem ia nos dar aula, se seria uma turma só, se seriam duas... Nesse meio tempo, quem nos deu aula foi o lendário Paulo Coimbra Guedes. Nessas aulas, éramos encorajados a escrever muito, e ler em aula, para receber críticas e melhorar nossos textos. Isso rendeu o apelido de "Terapia Textual" à cadeira. Sem mais delongas, ao texto, tal qual como eu salvei para poder entregar ao professor:




Quem sou eu?

            Dizem que nós sempre mudamos quando viajamos. Recentemente tive a oportunidade de ir à terra do sol nascente através de uma bolsa de estudos para a realização de um sonho. Aconteceram algumas coisas nessa viagem que me colocaram para pensar no que tenho eu a ver com a minha cultura. Por cultura entenda-se hábitos, maneiras e tudo mais que nos influiu (e ainda influi) no nosso crescimento. Isso é um pouco complicado de responder, principalmente por podermos dividir essa questão em alguns subníveis. Podemos pensar (aqui no nosso caso) em cultura brasileira, cultura gaúcha (como estado) ou a "gaudéria" (em um aspecto mais tradicionalista) e até mesmo aquela educação que recebemos dos nossos pais, que pode ter nada a ver com isso tudo (mas aí teria a ver com a cultura deles, mas isso é outra história). O fato é que eu nunca havia pensado nisso até o momento. Falar na cultura é falar nos estereótipos, então comecemos por eles e vejamos o que aconteceu comigo.
            No lugar em que morávamos havia um refeitório, que servia pratos de diversos locais do mundo. Tudo para agradar a variada clientela (nós), oriunda de muitos países. Frango vietnamita, porco chinês, legumes indianos, pão árabe, tempero coreano e tudo mais. Até que teve um dia que teve Churrasco. Naquela altura do campeonato já devíamos estar enjoados de peixe ou porco, mas pego porco à milanesa, já que não havia sushi no dia. A curitibana, ao ver meu prato, me pergunta: "Ué, você não pegou o Churrasco? Não tá com saudade de carne de verdade?". Frente a isso, respondo tranquilamente que não como carne. "Mas você é gaúcho, e gaúcho come carne!". Um viva a cultura do charque e suas heranças. O ruim é explicar aos cidadãos que eu não como só a carne de gado, e frango, porco e peixe (especialmente cru) eu aprecio bastante. Tive vontade de responder: "É, estou com saudade de um bom galeto!", mas fiquei quieto.
            Mais tarde, comentei com eles sobre a minha aventura na casa dos japoneses. Fazia parte do programa uma visita a um lar nipônico. E, como toda boa visita deve proceder no Japão, levei um presente. E escolher presente não é uma atividade que eu goste muito. "Leva algo regional, alguma coisa que só tenha aí", me disse a secretária da Fundação Japão na ocasião da programação da viagem. Certo, nada mais regional que um bom e velho amargo. Só havia um problema: nunca preparei mate antes. Azar, vai ser como presente mesmo e eu vou acabar nem fazendo. No final do dia, após uma janta tradicional (japonesa), minha colega (fazíamos as visitas em duplas) teve a brilhante ideia de dar o presente naquela hora. Tudo bem. Só que uma das senhoras era bem viajada, já tinha ido à terra dos hermanos, nossos vizinhos, e reconheceu o aparato. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, já estava na cozinha com o blusão arremangado, cuia na mão e erva na outra. Não adiantou dizer que eu não sabia fazer direito, a vontade dos japoneses de experimentar esse "chá exótico" era grande. Fiz, e não ficou ruim! Diferenças culturais à parte (acho que eles não gostaram muito da ideia de usar o mesmo "canudo", talvez por higiene), até cheguei a ensinar (parcamente) como se fazia, para que eles pudessem usar todo o Mate Barão embalado à vácuo que levei.
            Essas coisas foram um pouco chocantes (para os meus amigos brasileiros, não para os japoneses) saber que eu sou um gaúcho não gaudério. Será que por causa disso, eu estaria renegando minhas origens, tradições? Tradições, aliás, das quais nunca fiz parte, pois felizmente meus pais me deram liberdade total nesse quesito. Nunca gostei muito de bombacha, dança do pezinho e cavalo.
            Enfim, também fazia parte do programa uma visita a uma escola que equivale as nossas do ensino básico (a extinta de 1º a 4º série). Nessa atividade, passamos o dia todo com eles, em suas atividades. Fomos às salas de aula, limpamos a escola (eles costumam fazer isso por lá), almoçamos juntos e tudo mais. Nós tínhamos também uma tarefa, a de apresentar aos alunos um pouco sobre nossa cultura, nosso país. E lá fui eu, brasileiro típico, falar com as crianças. Como eles nunca devessem ter ouvido falar na região sul do Brasil, me arrisquei mais a falar sobre o nosso pampa. Na hora das perguntas, só coisas em relação ao futebol, carnaval e café. Sim, café! Lá eles tomam bastante café e queriam saber a minha opinião a respeito do café tupiniquim, mas não gosto de café. Na parte do futebol, só consegui dizer que o Ronaldinho Gaúcho era da mesma cidade que eu, por que eles sabiam muito mais do que eu, que sei a regra do impedimento e olhe lá. Eles até tentaram me dar uma bola para algumas embaixadinhas
            Noutro dia, fizemos uma festa, com as pessoas dos vários cursos. Foi a hora de ser estereotipado pelos outros estrangeiros. Música alta, alguma coisa eletrônica qualquer, eu estava conversando em bom portunhol com o Hermano, quando fomos abordados por uma mulher alta, loira e de olhos azuis. Ela era da Albânia e estava completamente bêbada. Era a aniversariante. Primeiro ela leva o seu hálito de saquê ao portenho e grita: "Vocês são latinos! Vamos dançar!". E começa a puxá-lo para o centro da sala. Ele resiste, dizendo que não dança. Então ela pede para colocar um tango, para que ele não tenha desculpa e continua puxando. Não tinha tango e nem quem o dançasse, pois o argentino era tão pé-de-valsa como eu. Antes que ficasse decepcionada, veio para o meu lado. Já avisei de antemão que não dançava nada, nem samba, nem pagode e tampouco axé (e eles não tinham também). Sem sorte, acabou por nos xingar e ficar sem um latino para dançar.
            E agora, por conta disso, a questão de antes também se aplica aqui. Será que não estou sendo um brasileiro "direito"? Só por que não gosto (nem um pouco) de samba ou outros aspectos culturais brasileiros que são exportados?
Então aconteceu que eu, brasileiro (branco, sem havaianas no pé, sem habilidade para futebol, sem gosto por samba, MPB, e afins) e gaúcho (sem pilcha, sem comer carne de gado, sem saber andar a cavalo ou fazer churrasco, sem equipamento de mate a tiracolo), acabei me adaptando fácil a cultura, o que não deixa de ser um ponto intrigante nisso tudo. O que isso significa? Que eu ignoro a minha própria e adotei outra? Acho que não é bem isso.
            Depois que voltei do Japão, os contrastes ficaram mais evidentes. Não pelo Japão em si, mas acho que isso acontece quando saímos do nosso meio para qualquer lugar culturalmente diferente. Poderia ter sido a Inglaterra, África do Sul, Canadá ou Iraque que ia dar no mesmo. Comecei a me incomodar com algumas coisas que eu até percebia antes, mas não me incomodavam tanto. Esses dias eu vi uma cena deprimente, um rapaz, comendo bolacha e tomando refri na parada joga as embalagens terminadas no chão, ali mesmo onde estava. Nem para jogar um pouco longe. E havia uma lixeira a menos de três metros dele, e ela não estava entupida nem nada. Senti vontade de pegar a garrafa pet descartada e esfregar no nariz dele. Felizmente o 1,90m e aparentes 100 kg dele me desencorajaram.
            Alguém me disse que nós sempre seremos o que somos onde quer que estejamos. Isso significa que eu vou ser brasileiro e gaúcho onde quer que eu vá. Isso é verdade, eu senti isso (de certa forma) por lá. Teve uma vez que eu morri de vontade de (ser brasileiro e) atravessar a rua no sinal vermelho para pedestres, só por que não havia nenhum carro passando. Eu não hesitaria em fazê-lo aqui, mas lá eu aguardei o sinal mudar. Por quê?
            Demorei algum tempo para me "readaptar" à cultura nossa de cada dia. Permaneci com alguns hábitos de lá, sejam bons ou ruins, adquiridos lá ou aqui. Fiz barulho tomando sopa com a minha família. Dei troco de um centavo ao invés de bala. Ouvi música no transporte público com fone de ouvido. Aguardei a minha vez na fila. Até esperei o sinal para pedestres abrir.
            Agora a dúvida levantada permanece: pertenço mais ao Japão do que ao Brasil? Quem (culturalmente) sou eu?

1 comentários:

  1. Acho que é a pergunta que nós que gostamos de estudar culturas/línguas diferentes - e especialmente nós, do japonês (pela diferença gigantesca) - sempre nos fazemos em algum momento. Mesmo não me identificando nem 50% com a "cultura brasileira", tenho certeza de que nunca vou me identificar o suficiente com qualquer cultura que seja (mesmo a japonesa)...
    Enfim.
    (Ah! Suspeito que o negócio de compartilhar o canudo - fora a questão da higiene - chocou por causa daquele conceito que os japoneses têm de "beijo indireto". Mas o senpai não lê shoujo nem vê dorama, então vou te deixar jogar no Google.xD)

    ResponderExcluir