Enquanto resolvo o que produzir para colocar aqui (talvez eu relembre minha adolescência, traduzindo algumas músicas), inauguro então a seção dos textos acadêmicos. Um que eu produzi para a cadeira de Produção Textual. Na época essa cadeira estava uma zona, ninguém sabia quem ia nos dar aula, se seria uma turma só, se seriam duas... Nesse meio tempo, quem nos deu aula foi o lendário Paulo Coimbra Guedes. Nessas aulas, éramos encorajados a escrever muito, e ler em aula, para receber críticas e melhorar nossos textos. Isso rendeu o apelido de "Terapia Textual" à cadeira. Sem mais delongas, ao texto, tal qual como eu salvei para poder entregar ao professor:
Quem
sou eu?
Dizem que nós sempre mudamos quando
viajamos. Recentemente tive a oportunidade de ir à terra do sol nascente através
de uma bolsa de estudos para a realização de um sonho. Aconteceram algumas
coisas nessa viagem que me colocaram para pensar no que tenho eu a ver com a
minha cultura. Por cultura entenda-se hábitos, maneiras e tudo mais que nos
influiu (e ainda influi) no nosso crescimento. Isso é um pouco complicado de
responder, principalmente por podermos dividir essa questão em alguns
subníveis. Podemos pensar (aqui no nosso caso) em cultura brasileira, cultura
gaúcha (como estado) ou a "gaudéria" (em um aspecto mais
tradicionalista) e até mesmo aquela educação que recebemos dos nossos pais, que
pode ter nada a ver com isso tudo (mas aí teria a ver com a cultura deles, mas
isso é outra história). O fato é que eu nunca havia pensado nisso até o
momento. Falar na cultura é falar nos estereótipos, então comecemos por eles e
vejamos o que aconteceu comigo.
No lugar em que morávamos havia um
refeitório, que servia pratos de diversos locais do mundo. Tudo para agradar a
variada clientela (nós), oriunda de muitos países. Frango vietnamita, porco
chinês, legumes indianos, pão árabe, tempero coreano e tudo mais. Até que teve
um dia que teve Churrasco. Naquela altura do campeonato já devíamos estar
enjoados de peixe ou porco, mas pego porco à milanesa, já que não havia sushi
no dia. A curitibana, ao ver meu prato, me pergunta: "Ué, você não pegou o
Churrasco? Não tá com saudade de carne de verdade?". Frente a isso,
respondo tranquilamente que não como carne. "Mas você é gaúcho, e gaúcho
come carne!". Um viva a cultura do charque e suas heranças. O ruim é
explicar aos cidadãos que eu não como só a carne de gado, e frango, porco e
peixe (especialmente cru) eu aprecio bastante. Tive vontade de responder:
"É, estou com saudade de um bom galeto!", mas fiquei quieto.
Mais tarde, comentei com eles sobre
a minha aventura na casa dos japoneses. Fazia parte do programa uma visita a um
lar nipônico. E, como toda boa visita deve proceder no Japão, levei um
presente. E escolher presente não é uma atividade que eu goste muito.
"Leva algo regional, alguma coisa que só tenha aí", me disse a
secretária da Fundação Japão na ocasião da programação da viagem. Certo, nada
mais regional que um bom e velho amargo. Só havia um problema: nunca preparei
mate antes. Azar, vai ser como presente mesmo e eu vou acabar nem fazendo. No
final do dia, após uma janta tradicional (japonesa), minha colega (fazíamos as
visitas em duplas) teve a brilhante ideia de dar o presente naquela hora. Tudo
bem. Só que uma das senhoras era bem viajada, já tinha ido à terra dos hermanos, nossos vizinhos, e reconheceu
o aparato. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, já estava na cozinha com
o blusão arremangado, cuia na mão e erva na outra. Não adiantou dizer que eu
não sabia fazer direito, a vontade dos japoneses de experimentar esse "chá
exótico" era grande. Fiz, e não ficou ruim! Diferenças culturais à parte
(acho que eles não gostaram muito da ideia de usar o mesmo "canudo",
talvez por higiene), até cheguei a ensinar (parcamente) como se fazia, para que
eles pudessem usar todo o Mate Barão embalado à vácuo que levei.
Essas coisas foram um pouco
chocantes (para os meus amigos brasileiros, não para os japoneses) saber que eu
sou um gaúcho não gaudério. Será que por causa disso, eu estaria renegando
minhas origens, tradições? Tradições, aliás, das quais nunca fiz parte, pois
felizmente meus pais me deram liberdade total nesse quesito. Nunca gostei muito
de bombacha, dança do pezinho e cavalo.
Enfim, também fazia parte do
programa uma visita a uma escola que equivale as nossas do ensino básico (a
extinta de 1º a 4º série). Nessa atividade, passamos o dia todo com eles, em
suas atividades. Fomos às salas de aula, limpamos a escola (eles costumam fazer
isso por lá), almoçamos juntos e tudo mais. Nós tínhamos também uma tarefa, a
de apresentar aos alunos um pouco sobre nossa cultura, nosso país. E lá fui eu,
brasileiro típico, falar com as crianças. Como eles nunca devessem ter ouvido
falar na região sul do Brasil, me arrisquei mais a falar sobre o nosso pampa.
Na hora das perguntas, só coisas em relação ao futebol, carnaval e café. Sim,
café! Lá eles tomam bastante café e queriam saber a minha opinião a respeito do
café tupiniquim, mas não gosto de café. Na parte do futebol, só consegui dizer
que o Ronaldinho Gaúcho era da mesma cidade que eu, por que eles sabiam muito
mais do que eu, que sei a regra do impedimento e olhe lá. Eles até tentaram me
dar uma bola para algumas embaixadinhas
Noutro dia, fizemos uma festa, com
as pessoas dos vários cursos. Foi a hora de ser estereotipado pelos outros
estrangeiros. Música alta, alguma coisa eletrônica qualquer, eu estava
conversando em bom portunhol com o Hermano,
quando fomos abordados por uma mulher alta, loira e de olhos azuis. Ela era da
Albânia e estava completamente bêbada. Era a aniversariante. Primeiro ela leva
o seu hálito de saquê ao portenho e grita: "Vocês são latinos! Vamos
dançar!". E começa a puxá-lo para o centro da sala. Ele resiste, dizendo
que não dança. Então ela pede para colocar um tango, para que ele não tenha
desculpa e continua puxando. Não tinha tango e nem quem o dançasse, pois o
argentino era tão pé-de-valsa como eu. Antes que ficasse decepcionada, veio
para o meu lado. Já avisei de antemão que não dançava nada, nem samba, nem
pagode e tampouco axé (e eles não tinham também). Sem sorte, acabou por nos
xingar e ficar sem um latino para dançar.
E agora, por conta disso, a questão
de antes também se aplica aqui. Será que não estou sendo um brasileiro
"direito"? Só por que não gosto (nem um pouco) de samba ou outros
aspectos culturais brasileiros que são exportados?
Então aconteceu que eu, brasileiro (branco, sem havaianas
no pé, sem habilidade para futebol, sem gosto por samba, MPB, e afins) e gaúcho
(sem pilcha, sem comer carne de gado, sem saber andar a cavalo ou fazer churrasco,
sem equipamento de mate a tiracolo), acabei me adaptando fácil a cultura, o que
não deixa de ser um ponto intrigante nisso tudo. O que isso significa? Que eu ignoro
a minha própria e adotei outra? Acho que não é bem isso.
Depois que voltei do Japão, os
contrastes ficaram mais evidentes. Não pelo Japão em si, mas acho que isso
acontece quando saímos do nosso meio para qualquer lugar culturalmente
diferente. Poderia ter sido a Inglaterra, África do Sul, Canadá ou Iraque que
ia dar no mesmo. Comecei a me incomodar com algumas coisas que eu até percebia
antes, mas não me incomodavam tanto. Esses dias eu vi uma cena deprimente, um
rapaz, comendo bolacha e tomando refri na parada joga as embalagens terminadas
no chão, ali mesmo onde estava. Nem para jogar um pouco longe. E havia uma
lixeira a menos de três metros dele, e ela não estava entupida nem nada. Senti
vontade de pegar a garrafa pet descartada e esfregar no nariz dele. Felizmente
o 1,90m e aparentes 100 kg dele me desencorajaram.
Alguém me disse que nós sempre
seremos o que somos onde quer que estejamos. Isso significa que eu vou ser
brasileiro e gaúcho onde quer que eu vá. Isso é verdade, eu senti isso (de
certa forma) por lá. Teve uma vez que eu morri de vontade de (ser brasileiro e)
atravessar a rua no sinal vermelho para pedestres, só por que não havia nenhum
carro passando. Eu não hesitaria em fazê-lo aqui, mas lá eu aguardei o sinal
mudar. Por quê?
Demorei algum tempo para me
"readaptar" à cultura nossa de cada dia. Permaneci com alguns hábitos
de lá, sejam bons ou ruins, adquiridos lá ou aqui. Fiz barulho tomando sopa com
a minha família. Dei troco de um centavo ao invés de bala. Ouvi música no
transporte público com fone de ouvido. Aguardei a minha vez na fila. Até
esperei o sinal para pedestres abrir.
Agora a dúvida levantada permanece:
pertenço mais ao Japão do que ao Brasil? Quem (culturalmente) sou eu?
Acho que é a pergunta que nós que gostamos de estudar culturas/línguas diferentes - e especialmente nós, do japonês (pela diferença gigantesca) - sempre nos fazemos em algum momento. Mesmo não me identificando nem 50% com a "cultura brasileira", tenho certeza de que nunca vou me identificar o suficiente com qualquer cultura que seja (mesmo a japonesa)...
ResponderExcluirEnfim.
(Ah! Suspeito que o negócio de compartilhar o canudo - fora a questão da higiene - chocou por causa daquele conceito que os japoneses têm de "beijo indireto". Mas o senpai não lê shoujo nem vê dorama, então vou te deixar jogar no Google.xD)