Da Chegada do
Feiticeiro
Despertando de súbito de seu transe por um trovão,
Aurindë levanta. Resolve verificar se tudo está bem em sua casa, pois tem uma
estranha sensação a incomodando. No quarto de Silmelokë, encontra-o vazio. “Mas
o que...?” Um relâmpago ilumina o quarto, chamando a atenção dela para um livro
entreaberto, com as páginas sendo viradas pelo vento. Ela posiciona na última
página escrita, cujas letras ainda estão úmidas pela tinta, e começa a ler.
"Meu nome é Gwythyr, Feiticeiro de Batalha da
Divisão Glacial do Exército Imperial de Draconnia. Minha unidade, Suspiro
Gelado, tem por missão rastrear da maneira mais discreta possível o Homem de
Preto, que fez refém o filho do Imperador de Draconnia.
Seguimos alguns boatos a respeito deste que é um dos
maiores mercenários conhecidos sobre seu paradeiro, e acabamos perto de uma
Mina Abandonada. Afinal, por que ele está metido nisso? Quem o teria
contratado? É certo que ele só pega trabalhos que o agradam, e só os mais
lucrativos e vis. Inúmeras vezes escapou da lei. E por que deixou que se
soubesse que ele realizou o sequestro? Por que ainda não pediu o resgate? Tudo
muito estranho. Resolvemos entrar furtivamente na mina para investigar.
Alguns momentos depois, localizamos a Legião dos
Perdidos, ou parte dela. Um grupo, ou melhor, um exército feito da escória do
mundo. Dizem que seu fundador reuniu alguns mercenários e guerreiros perdidos
da última grande guerra para formar sua própria milícia, a fim de vingar-se de
alguns Generais que o haviam destratado. Na mina, pude ver três dos seus
principais comandantes, sendo que dois deles deveriam estar mortos! Talvez
estejam...
Estavam conversando com outras três pessoas. Uma delas
vestia-se de negro, com uma armadura que parecia feita de ossos. Um General dos
Batalhões do Medo! O segundo, vestido com uma armadura completa de aço
escurecido e correntes negras. Um dos Comandantes da Milícia de Metal. Não há
dúvidas! O que está acontecendo é terrível! Draconnia deve saber disso tudo!
Quase gritei, quando minha atenção foi desviada para o terceiro homem. Vestido
somente com uma túnica negra, repleta de bordados arcanos dourados, parecia
emanar uma aura maligna, pois o solo ao seu redor estava morto. Olhava para mim
ao mesmo tempo em que conversava com o restante do fatídico grupo. Temos que
avisar a Capital! À medida que fomos nos esgueirando para a saída, foi dado o
alarme. Fomos pegos! Agora não temos escolha se não lutar.
O que se seguiu não foi uma luta, e sim um massacre. Vi
dois de meus companheiros morrerem. Em meio à luta, vislumbrei o que parecia
ser o homem de preto. Ele me olhava no fundo da alma. Parecia que só havíamos
nós naquela hora. Ninguém me atacava, por mais feroz que estivesse o embate. Eu
tampouco vi alguém por perto. Seu olhar era de desafio. Ele entra numa fenda na
parede. Minha honra não deixara passar esse desafio em branco. Segui-o.
O caminho era tortuoso e subia muito. A luz da lua
indicava o fim da trilha. Parecia ser o topo da mina, um local inóspito e
estéril, cheio de pedregulhos. Praticamente um deserto. Procurei pelo meu
adversário em vão, não parecia estar em nenhum local próximo. Neste momento, já
me esquecera de que meus companheiros estavam lutando por suas vidas, e que eu
deveria ajudá-los. Deviam ter sido feito prisioneiros ou mortos. O eclipse
chega a seu ápice.
"Bem vindo às minhas terras, tu serás
amaldiçoado!"
Ditas essas maldições, vejo o Homem de Preto em pé numa
elevação próxima. Sentadas próximas a ele, estão uma mulher e uma criança. Não
pode ser! Elas? Ele as liberta, e elas vêm em minha direção. Ergue seus braços
e uma tempestade de fogo, fumaça e areia surge por detrás de seu manto em nossa
direção. Elas são dilaceradas. A tempestade chega a mim, a última coisa que
lembro é a risada maligna do Homem de Preto e a Torre Negra iluminada pelo
eclipse.
Achei que havia morrido. Mais tarde contaram-me que fui
encontrado parcialmente em chamas, em meio à neve. Acordei em uma espécie de
prisão, junto com um Elfo que também não estava muito bem. Eu estava muito
ferido, havia queimaduras por todo meu corpo. Não tardaria a morrer. E de fato,
morri. É uma sensação esquisita, o meio termo. Foi quando ouvi uma voz.
"Você ainda tem muito que fazer".
Nesse instante toda a luz que havia onde eu estava se
torcia e contorcia. Acordo de súbito. Vejo o Elfo ao meu lado, por entre as
grades ele mantém a mão direita no meu peito. Na esquerda, segura uma flauta.
No momento em que levanto, ele cai. Chamo por ele em vão, pois ele já jaz morto
no chão. Vi corpos demais para ter dúvidas. O feitiço de cura que ele me
aplicou não me curou totalmente, mas pelo menos eu iria sobreviver. Em memória
daquele que me salvou, tomo sua flauta. Nunca soube o nome dele.
Posteriormente, fui levado a um templo, para que me
restaurasse. Eu havia sido salvo pelos Eladrins, parentes distantes dos Elfos.
Até então eu não tinha percebido que estava em um mundo completamente diferente
do meu. Aurindë, a Eladrin que me acolheu, disse que era um evento auspicioso a
minha chegada. Por isso não tinham me eliminado. Ela me recebeu em sua casa,
para saber tudo o que acontecera. Nunca um filho de Bahamut havia aparecido
desta maneira por lá.
Foi só neste momento que percebi que estava em um mundo
completamente diferente do meu. Meu vasto conhecimento das montanhas e vales de
Draconnia nada adiantou. Até mesmo meus idiomas eles não entendiam. Meus
poderes haviam mudado, meu corpo mudara. Perdi minhas asas, minha cauda, fiquei
maior, mais jovem. Parecia não passar dos quinze anos. Estudei as línguas deste
mundo e em breve fui capaz de me comunicar com o restante dos cidadãos. Embora
Aurindë tenha me dado um nome, Silmelokë Ninquemorion, que significa Dragão
Prateado, Filho das Neves Noturnas, o povo quase sempre me chamava de Lokerion,
Filho do Dragão. Muito criativos esses elfos e seus nomes. Mas acabei me
acostumando somente com Krion, que é como um Clérigo, chamado Heskan, me
chamava. Ele disse que soava mais dracônico, embora fiel ao que me chamavam.
Havia sido chamado por Aurindë para auxiliar nos meus estudos onde ela não
podia ajudar muito, sobre Dragões e outros planos.
Heskan me apresentou a quem me encontrara em meio à neve.
O'tellan Tur. Um jovem meio-elfo muito curioso. Junto dele e de Heskan, pude
praticar a linguagem dos elfos deste mundo, assim como a dos Dragões.
Estranhamente O'tellan também sabia dracônico, o que colaborou nos treinos.
Sempre que podia ele ia ao templo para conversar conosco. Afinal, não podia
falar dracônico com mais ninguém.
Certo dia, enquanto tentava recobrar a lembrança da minha
magia, O'tellan me viu lançar chamas pelas mãos. Seus olhos brilhavam. Insistiu
para que eu o ensinasse. Não bastaram os meus avisos e de Heskan de que se
tratava de uma habilidade do sangue. Imitava-me em meus gestos e palavras, numa
vã tentativa de copiar-me. Ou se nasce com o dom ou não. Até que em uma das
vezes em que o dispensava em meio ao fogo pra ver se aprendia, vejo uma pálida
chama em sua palma. Ele conseguiu. Passou a praticar comigo, mas nunca me
alcançou. Ele tem talento, mas ainda não é seu negócio.
À medida que os meses iam passando, meu treinamento ia se
tornando mais desnecessário, pois já estava totalmente recuperado. Pelo menos
fisicamente, pois tenho que reaprender todas as minhas magias. Urge em mim uma
necessidade de conhecimento que não pode ser saciada nesta cidade. Aqui é um
local que depende exclusivamente do comércio entre cidades vizinhas, como uma
espécie de posto avançado em meio à natureza hostil. Preciso aprender sobre
Planos e Viagens do tipo, pois tenho que voltar. Essa vontade cresce a cada
dia. Descobri que pouco a pouco estou perdendo a minha memória do meu lar. Meu
outro nome e títulos agora pouco importam. Devo me apressar.
Esta é a última anotação que faço neste diário, uma
lembrança do que aconteceu de mais importante desde que cheguei. Diário que
deixo nas tuas mãos, pois esta noite, parto na minha busca. Já não me importa
mais se a Marcha do Tempo já começou e Draconnia tem seus dias contados, assim
como o príncipe. Tenho que descobrir o que aconteceu com meus companheiros e
com elas. Namarië, Aurindë, Heskan. Perdoem-me se parto sem dizer adeus, mas
voltarei antes do fim. Se o Homem de Preto e sua Torre Negra estão neste mundo,
irei encontrá-los, custe o que custar. Namarië, Aurindë, namarië."
Ela fecha o livro e dirige-se até a janela escancarada.
Olhando um vulto que se afasta nas trevas e se une a outro, ela se despede:
“Namarië, Silmelokë. Que tu possas encontrar tua senda e o caminho de
regresso.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário